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Da Rede - Governos petistas e a inovação da gestão pública

Publicado na Teoria e Debate

A ascensão do Partido dos Trabalhadores (PT) à Presidência do Brasil em 2003 e os três mandatos subsequentes de Lula e Dilma inovaram na gestão pública com a promoção de uma verdadeira reforma democrática e institucional. Emerge, nesse período, um Estado democrático, indutor de desenvolvimento e com presença internacional destacada e soberana, características que, de forma simultânea, jamais tinham sido realidade no país. As políticas implementadas traduzem de modo efetivo o que estava desenhado como um sistema de direitos na Constituição Federal de 1988, mas que ainda demandava organicidade na esfera pública. As estruturas e instituições estatais que foram construídas nos governos petistas, com dimensão e alcance de longo prazo, promoveram o arcabouço necessário à implementação das principais políticas de proteção social conforme delineadas constitucionalmente. Foram, então, substanciadas por meio de leis, estatutos, planos, agências, empresas, conselhos, conferências e ministérios, que inovaram a formulação e o manejo das políticas. Foram apostas profundas nas mais diferentes áreas do Estado, que deram os contornos de um projeto articulado que dificilmente pode ser avaliado exclusivamente em termos econômicos, porque a sua essência valorativa é superior a esses como expressão e afirmação de direitos humanos. São experiências que pedem mais estudos e reflexões sobre a sua natureza, porque deixam resultados concretos de sua ação, seja como vetores de ampliação da democracia, ou como atores fundamentais na formulação e implementação das políticas públicas responsáveis pelas mais expressivas marcas da mudança cultural promovida pelos governos do PT. Direitos, participação e proteção social A Política Nacional de Participação Social consolidada no Decreto nº 8.243/14, mas na realidade implementada desde o primeiro mandato do presidente Lula, é central na estratégia de desenvolvimento dos últimos doze anos. Foram realizadas 97 conferências nacionais sobre 43 temas diferentes desde 2003, assim como foram implantados vários conselhos e os que antes existiam passaram a funcionar de modo regular. As secretarias de Igualdade Racial, Mulheres, Direitos Humanos e Juventude assumiram as pautas clássicas dos movimentos sociais e passaram a tensionar no campo das políticas públicas por espaços para suas reivindicações e direitos, promovendo uma nítida mudança na perspectiva e na resposta do Estado a essas demandas. A existência desses órgãos trouxe lições profundas sobre a possibilidade de consolidar capacidades estatais enraizadas nos movimentos sociais e construir de fato uma nova esfera de relação entre sociedade e Estado, atendendo à principal demanda social contemporânea, que é a necessidade de ser partícipe e tomador de decisões na formulação e execução de políticas públicas. Como espaços de efetiva participação social destacaram-se as Conferências Nacionais de Promoção da Igualdade Racial, de Política para a Mulher, de Direitos da Pessoa Idosa, de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais e o Congresso Nacional de Movimento da População de Rua. No campo regulador, são destaques o Estatuto da Igualdade Racial, aprovado em 2010; a Lei de Cotas para acesso às universidades (Lei nº 12.711/2012); a Lei das Cotas no serviço público federal (Lei nº12.990/14), em 2014; o Estatuto do Idoso, em 2003, o Fundo Nacional do Idoso em 2010; e o Estatuto da Juventude, em 2013. Cabe destacar também a regularização de terras quilombolas e de terras indígenas, da qual é exemplo a reserva Raposa Serra do Sol. Em 2006, foi instituído um dos maiores instrumentos legais para enfrentamento da violência de gênero, a Lei Maria da Penha, e a previsão da união homoafetiva feminina. Em 2008 foi realizada a I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais e o Ministério da Saúde, por meio de portaria, passou a permitir a mudança de sexo pelo SUS. Em 2013 foi aprovada a PEC das domésticas, garantindo, entre outros, o direito ao FGTS e à jornada de oito horas diárias, sendo também lançada a terceira edição do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Nesse ano já estavam dadas as condições para a quase universalização dos conselhos tutelares e de direitos, fortalecendo sobremaneira o Estatuto da Criança e do Adolescente. Pode-se também creditar a esse movimento afirmativo de direitos a Lei de Cotas nas universidades, que já alcançou 50% das instituições federais e a meta de ocupar 56% das suas vagas com alunos oriundos de escolas públicas, distribuídas de forma proporcional aos critérios demográficos de cada unidade federativa entre pretos, pardos e indígenas1. A Defensoria Pública e o Ministério Público foram também fortalecidos ao longo dos três governos presidenciais do PT. A Emenda 45/2004 criou a possibilidade de os tratados internacionais sobre direitos humanos terem equivalência com as emendas constitucionais. Por sua vez, a Emenda 80/2014 atribuiu à defensoria a função de promotora dos direitos humanos. Os ministérios do Desenvolvimento Social, do Desenvolvimento Agrário, das Cidades, da Previdência e do Trabalho implementaram políticas e programas inéditos e alcançaram resultados com impactos permanentes sobre a distribuição de renda e oportunidades para população brasileira. Os exemplos a seguir (ver tabela 1 e gráfico 1) foram selecionados pela dimensão e escala que assumiram a partir de 2003, mas vários outros programas dessas áreas foram fundamentais para a mudança social que caracterizou esse período. Tabela 1 - Benefícios e serviços públicos ofertados (2001-2014)2




As políticas previdenciárias, de trabalho e renda, o programa Bolsa Família, a política de valorização do salário mínimo e as ações afirmativas desenvolvidas pelos governos do PT são os principais responsáveis pelo resultado central do modelo: o crescimento da renda per capita e a simultânea redução das desigualdades sociais, num movimento inédito na história do país. As políticas petistas indicam uma inversão de prioridades quando comparados aos governos antecessores, já que estes tinham por meta a estabilização econômica como principal objetivo, a despeito dos altos custos sociais incorridos para este fim.


Gráfico 1 - PIB per capita real e Índice de Gini3



O desemprego caiu, alcançando a taxa de 4,8% em 2014. Simultaneamente, a formalização do trabalho entre 2001 e 2014 cresceu 81%. A esses avanços no mercado de trabalho soma-se a redução de desigualdades sociais históricas. Entre 2004 e 2013, o rendimento mensal médio do trabalho das mulheres cresceu 58,8%, ao passo que o dos homens subiu 41,8%, do mesmo modo que o crescimento do índice para população negra (63%) superou o aumento verificado para a população branca (46,5%). O investimento público total em educação em relação ao PIB apresentou um importante incremento, passando de 4,5% em 2004 para 6,2%, em 2013. Em 2014, foi aprovado o Plano Nacional de Educação (PNE), que estabelece vinte metas para a próxima década. Uma destas metas estabelece que o investimento público total em educação pública deve ser ampliado de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 10% do PIB no final da vigência do plano. Foram marcos desta política a reforma da educação profissional, a criação dos Institutos Federais (IFs), o Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), o Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). O fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) foi fundamental para garantir, anualmente, 3,8 bilhões de procedimentos ambulatoriais, 1,2 bilhões de atendimentos na Atenção Básica e 447 milhões de atendimentos na Atenção Especializada neste período, o que demonstra a dimensão de um sistema universal que atende com exclusividade 150 milhões de pessoas. Os indicadores de saúde da população brasileira têm avançado em vários aspectos como a expectativa de vida ao nascer que aumentou 4,8 anos entre 2001 e 2014, atingindo 75,1 anos. Houve queda da mortalidade infantil em todas as regiões e o Brasil alcançou a taxa de 14,1 óbitos por mil nascidos vivos. Em 2013, foi projetada a queda de 25% de óbitos maternos, o que corresponde a 25% de redução em relação aos dados em 2001. Para implementar esse modelo, houve um redirecionamento dos recursos federais para o financiamento das políticas sociais e das políticas de transferência de renda (ver gráfico 2). Esse valor atingiu 16,1% do PIB em dezembro de 2014. Considerando que ao longo desse período o PIB cresceu, elevando a economia brasileira à posição de sétima economia global, essa escolha do governo federal acirrou a disputa pelo fundo público. Gráfico 2 - Evolução do gasto em políticas sociais nos orçamentos da União (R$ de 2014 e % do PIB)4



Produção, consumo e investimento Além de inovar nas políticas sociais, o governo adotou um programa econômico que promoveu a restauração do Estado como indutor de desenvolvimento, com o protagonismo do mercado interno e da cadeia produção-consumo-investimento. No período de 2007 a 2014, apesar do baixo desempenho deste último ano, o crescimento acumulado do investimento (56,8%) ainda é maior que o do PIB (30%) e o do consumo (41,8%), como se verifica na série abaixo (tabela 2). Tabela 2 - Crescimento do PIB pela ótica de componentes selecionados da demanda: PIB, consumo e investimento (% a.a)



Fonte: IBGE/Contas Nacionais Trimestrais


Os investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), criado em 2007, e os das estatais contribuíram para essa trajetória. Os investimentos público atingiram seu ápice em 2010 (3,11% do PIB), nesse ano as estatais representavam 1,93% e o governo federal, 1,18%. Em 2014, o investimento público foi menor (2,83% do PIB), os investimentos das estatais caíram para 1,72% do PIB, depois de terem alcançado 2,11% em 2013. Nesse ano os dados revelam uma peculiaridade em relação a períodos anteriores quando se verificou redução do ritmo de crescimento da Formação Bruta de Capital Fixo (FBKF), a taxa de incremento do consumo foi muito baixa (0,9%) comparada com os anos de 2009 e 2012, quando houve variação negativa da FBKF, mas o consumo cresceu em torno de 4%. Durante os governos Lula e Dilma houve pelo menos três ciclos de políticas industriais: em 2004, a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE); em 2008, a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP); e em 2011, o Plano Brasil Maior. Essas políticas trouxeram avanços importantes e representam a valorização de um tema que estava fora da agenda governamental do governo FHC. A Lei da Inovação de 2004 e a chamada Lei do Bem de 2005 são exemplos de políticas que procuram integrar os incentivos à inovação com a modernização e maior competitividade da indústria nacional. No âmbito do arranjo institucional organizado para a implementação da política foi criada a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e direcionada a prioridade do crédito do BNDES. Entre as cadeias prioritárias do Brasil Maior – a política industrial hoje em vigor –, está a de petróleo e gás. Por meio de incentivos à cadeia de fornecedores da Petrobras para produzir impactos positivos sobre a economia foi um dos objetivos centrais da política de conteúdo nacional brasileira. Margens de preferência, facilitação do crédito e isenções tributárias foram articuladas para fortalecer a estrutura produtiva dos fornecedores nacionais, especialmente na exploração e produção do pré-sal. Hoje, a Petrobras afirma ter de 60% a 65% de conteúdo nacional nas suas plataformas. Para a continuidade dessa política com impactos significativos é necessário manter a continuidade do regime de partilha na produção e da manutenção da Petrobras como operadora única do pré-sal. Alinhada com o Brasil Maior está também a política de compras governamentais que garantem margem de preferência para produtos manufaturados e para serviços nacionais que atendam às normas técnicas brasileiras. O marco legal construído entre 2010 e 2011 permite que estados, o Distrito Federal e os municípios possam adotar essas medidas desde que respeitem a normatização federal e elaborem suas próprias legislações. Juntos, os três entes federados têm um potencial de compras estimado em 10% do PIB. Entre 2012 e 2014, vários produtos foram contemplados com esse incentivo como fármacos e medicamentos, equipamentos médico-hospitalares, máquinas e equipamentos, aeronaves executivas, equipamentos de tecnologia da informação e comunicação, e outros, definidos em decretos presidenciais editados no período. Apesar desses esforços e dos avanços institucionais, os resultados concretos dessas políticas ficaram aquém das expectativas do governo federal e dos empresários. A crise da indústria brasileira está mais intensa em 2015, como pode-se notar na série elaborada pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) (ver gráfico 3), no período entre janeiro de 2010 e maio de 20155. Dados recentes do IBGE mostram que no acumulado de janeiro a agosto, em relação ao mesmo período do ano passado, a indústria recuou 8,8%. Vários analistas apontam que desde a opção neoliberal do anos 90 que atrelou o Brasil a uma série de compromissos com as regras da globalização financeira, a predominância da autoridade monetária sobre as políticas ativas de desenvolvimento tem constrangido os incentivos necessários para o êxito de uma política industrial, como por exemplo, o câmbio excessivamente apreciado desde 2006.


Gráfico 3 - Indústria de Transformação



Inserção externa soberana O outro pilar do modelo foi a política de inserção externa soberana, priorizando a integração regional por meio do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). A América do Sul é área prioritária para a política externa brasileira, o Brasil busca convergência, cooperação e paz na relação com os países vizinhos. Em uma perspectiva econômica da integração, pode-se perceber a importância do Mercosul como parceiro comercial do Brasil pelo crescimento das exportações brasileiras para o bloco. Destaca-se a importância da relação com toda a América do Sul, que pode ser medida pela dimensão do superávit comercial de US$ 9,1 bilhões em 2013. Ampliamos a presença no cenário internacional com o Ibas (Índia, Brasil e África do Sul) e o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), bloco de países que se uniram pela democratização das instituições financeiras internacionais e que nos últimos anos incrementaram bastante a sua agenda incluindo outros temas estratégicos em disputa na arena global. O papel do Brasil nessas iniciativas foi fundamental pela concepção universalista e comprometida com o multilateralismo, o que permitiu ao país ser bem sucedido nessas novas coalizões. A maior intensidade das relações com a África foi outro traço da mudança cultural que permeou a política externa. Além das questões geopolíticas que nos unem, temos laços históricos e culturais profundos com o continente africano. É evidente ainda o esforço do país para diversificar o destino das exportações e ocupar novos espaços, quando comparamos os anos 2002 e 2013. Tabela 3 - Exportações Brasileiras (Part. % sobre o valor total exportado)


Fonte: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Elaboração própria *Excluído o Oriente Médio **Excluído o Mercosul ***Incuído Porto Rico


A gestão do Estado para o desenvolvimento Em lugar de se buscar a perspectiva tecnocrática para orientar o debate sobre a gestão governamental, pode-se dizer que a inflexão para o modelo de Estado almejado pelo projeto democrático e popular foi dada pela política nacional de participação social e pela permeabilidade que ela criou às demandas sociais. O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), os inúmeros conselhos nacionais e os setoriais, as conferências, as audiências públicas e os diversos mecanismos de consulta influenciaram e, muitas vezes, definiram os projetos de lei de iniciativa do Executivo e muitas das políticas públicas formuladas e implementadas nos últimos doze anos. A metodologia de construção do Plano Plurianual (PPA) 2004-2007 representou uma ruptura com a concepção anterior. O PPA deixou de ser apenas um rol de investimentos e passou a ter direcionamento estratégico, a ser o lugar em que se afirmam os objetivos do governo e um instrumento para a gestão de políticas que foram decisivas para reduzir as desigualdades e fortalecer o mercado interno, buscando uma programação aderente às múltiplas dimensões do desenvolvimento e não apenas a sua redução ou submissão ao caráter econômico. Os planos setoriais também se constituíram em importante mecanismo orientador e organizador da gestão. Por meio desses planos o Estado recuperou parte importante da capacidade de planejamento, especialmente em áreas estratégicas como energia, transportes, mobilidade urbana, habitação, saneamento básico, resíduos sólidos, mineração, armazenagem, cultura, agroecologia etc. Da maioria desses planos derivou a obrigatoriedade da elaboração de planos estaduais e municipais revitalizando a prática do planejamento em todo o território nacional. Foram instituídas várias políticas e sistemas nacionais com o objetivo de definir diretrizes e prioridades nacionais e organizar a relação entre os entes federados e entre estes e a sociedade no processo de formulação e implementação de políticas públicas. Isso é particularmente importante no Brasil, um país continental, com três entes federados autônomos que possuem a responsabilidade constitucional pela implementação compartilhada das principais políticas públicas. Destacam-se o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), o Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar), o Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária (Suasa) e o Sistema Nacional de Cultura. Mecanismos ativos de coordenação, articulação e monitoramento como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o Plano Brasil Sem Miséria (PBSM) são inovações exitosas de gestão. Ambos têm efetiva prioridade orçamentária, Sala de Situação para tratar conflitos e pendências entre órgãos, sistema de governança interna e mecanismos de diálogo federativo. A esfera pública da economia se fortaleceu em diversos sentidos, as empresas estatais não financeiras, as empresas públicas, as instituições financeiras públicas e os fundos públicos passaram a ser coordenados para cumprir funções estatais e de financiamento do consumo e do investimento. A ação articulada desses instrumentos fortaleceu o mercado interno, os investimentos e viabilizou crédito para as empresas e para as famílias. Nos últimos sete anos, a carteira de crédito dos bancos públicos saltou de 34% do total das instituições financeiras brasileiras para 54%. Não menos importante foi a regulação pública do crédito ampliando os recursos direcionados do sistema de 17,4%, em 2010, para 28,1%, em 2014, viabilizando recursos para a política de habitação, para o investimento e para a agroindústria. Outro fator determinante para a qualidade da gestão foi a recomposição do quadro de pessoal do setor público e dos salários dos servidores, substituindo vínculos precários de trabalho, de natureza privatista tanto em áreas meios quanto nas áreas fim, de modo a resgatar a razão de que ao serviço público deve corresponder um conjunto de servidores organizados em carreiras correspondentes, qualificados para a implementação de políticas públicas. O modelo resiste à crise e ao ajuste? Duas questões principais colocam hoje esse modelo em risco: a crise internacional e as atuais opções em relação à política econômica do governo federal. Até dezembro de 2014, variáveis importantes do modelo estavam acompanhando a tendência observada em anos recentes: a taxa média de desemprego era de 4,8% contra 12,3%, em 2003; o crédito cresceu 11,3% em relação a 2013; o salário mínimo continuava acumulando ganhos reais, era R$ 762 contra R$ 435,70, em 2003 (valores médios anuais, em reais de 2014). O resultado da dívida líquida, em percentual do PIB, estava entre os quatro melhores registrados em doze anos, 36,7% do PIB. A taxa de inflação ficou em 6,4% ao ano, e não é um ponto fora da curva dos últimos doze anos nos quais convivemos com uma taxa média de 5,9%; a taxa mínima foi de 3,1%, em 2006, e a máxima foi de 9,3%, em 2003. O mesmo raciocínio vale para os juros, que fecharam o ano com uma taxa de 5,9% ao ano, comparado com um período de doze anos quando a média foi de 6,8%. Se a crise atual impõe desafios para a continuidade do modelo desenvolvido de 2003 a 2014, quais são os problemas a enfrentar no quarto mandato presidencial? A redução simultânea do investimento das estatais e do governo central com certeza é um deles, conforme destacou-se anteriormente. Desde 2011, o governo federal tenta incentivar o investimento privado por meio de desonerações, porém essa política não surtiu o efeito desejado, em parte porque essas decisões foram tomadas sem coordenação com a política industrial em curso. As renúncias comprometeram o resultado fiscal do governo e, em consequência, a disponibilidade de recursos para o investimento público. Em 2014 o valor das desonerações chegou ao montante expressivo de R$104 bilhões. (ver tabela 4) Tabela 4 - Desonerações Tributárias Instituídas desde 2012 – Impacto anual (em bilhões de reais)


Fonte: Ministério da Fazenda -Elaboração: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão



Para enfrentar a redução da demanda agregada, há pouco espaço fiscal para uma política expansiva de gastos públicos. O aumento das taxas de juros exige recursos da ordem de 6,1% do PIB para cobrir a despesa de juros da dívida pública, o mesmo patamar de 2007. A política de desonerações significou, em 2014, deixar de arrecadar R$ 104 bilhões. O déficit de transações correntes cresceu por conta da crise na Argentina, da estagnação da economia norte-americana, do menor ímpeto da economia chinesa e da queda acentuada no preço das commodities. A opção política por um ajuste ortodoxo para enfrentar as questões aqui apresentadas já está completando dez meses sem que se vislumbre sinais de melhora da economia. O único resultado positivo foi um menor déficit externo por conta da desvalorização do real e da redução das importações. A rigidez do ajuste está colocando em risco os pilares do modelo de desenvolvimento construído até agora e impressiona a velocidade com que isso está acontecendo: a taxa de desemprego chegou a 8,6% no trimestre de maio a julho, e vale lembrar que com as novas regras para o seguro-desemprego, o efeito estabilizador desse mecanismo foi reduzido e o impacto sobre a consumo é mais rápido do que em situações anteriores de elevação do índice de desocupação. O desemprego, aliado à inflação que alcançou 8,49% (IPCA-15) entre janeiro e outubro, configura uma situação que atinge de forma severa os trabalhadores, ou seja, a classe que deveria ser, e foi ao longo dos últimos doze anos, a grande beneficiária do projeto do governo do PT. A forma ortodoxa do ajuste seria deletéria em qualquer situação, porém é mais grave quando está associada à uma crise política de grandes dimensões, como se dá na atual conjuntura. Ao se fazer um ajuste com consequências graves para a base de sustentação partidária, corre-se o risco de perder além da governabilidade, a legitimidade. Não há parâmetro de comparação entre o ajuste atual e o realizado em 2003. Se não fosse pela realidade econômica muito distinta nesses dois momentos, há uma questão política que deveria pesar nas escolhas realizadas pelo governo: hoje o Partido dos Trabalhadores tem um legado político para proteger, como demonstram os avanços antes citados, em 2003 os parâmetros de comparação estavam naturalmente estabelecidos com os resultados alcançados pelo governo PSDB-FHC, de quem temos nos distinguido em termos de pensamento e práticas sobre o papel do Estado, especialmente no que concerne ao enfrentamento das desigualdades brasileiras. Distinção esta que o eleitor cristalizou nos resultados das quatro eleições consecutivas que asseguraram ao PT o exercício da Presidência da República. A natureza do desenvolvimento é profundamente política. A estratégia inclusiva que mudou a realidade da população pobre do Brasil e expandiu a renda dos trabalhadores deve ser a bússola para enfrentar os ajustes na economia. Existem soluções alternativas para o enfrentamento da crise que, para serem efetivadas, demandam grande esforço político, como a reforma tributária, a reforma política e o fortalecimento do pacto federativo com uma política clara de desenvolvimento regional. São essas as reformas estruturantes que podem contribuir para radicalizar o projeto em curso. Não fazê-las e optar por contornar o problema com soluções aparentemente fáceis porque são variáveis sob controle do governo, tais como a elevação da taxas de juros ou cortes ainda mais drásticos no orçamento público, podem conduzir à deterioração do legado do PT e à perda de confiança da sua base social. Esther Bemerguy de Albuquerque é economista com especialização em Teoria Econômica. Foi secretária do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República (2004-2011) e secretária da Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos do Ministério do Planejamento (2012-2014)




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